Emoção, humor e conexões: saiba como foi o primeiro Festival Negritudes Globo em Salvador
18/07/2024
(Foto: Reprodução) Evento foi realizado nesta quinta-feira (18), na Casa Baluarte. Tarsila Alvarindo mediando a mesa com Valmir Boa Morte, Amaury Lorenzo e Elisa Lucinda no Negritudes Globo
Globo/Ícaro Cerqueira
A realização do Festival Negritudes Globo, em Salvador, foi um momento para imaginar e cultivar um futuro com mais diversidade e dignidade para os profissionais negros. O evento recebeu nomes como o influenciador Gil do Vigor, o ator Amaury Lorenzo e a atriz e escritora Elisa Lucinda.
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Após participar de um painel sobre a potência das narrativas orais, Elisa se emocionou em entrevista à imprensa. A artista não resistiu às lágrimas ao comentar o sucesso de “Vai na Fé”, novela da TV Globo considerada um marco pela grande presença de artistas negros no elenco.
“Eu sonho com uma sociedade em que as próximas levas de pretos possam viver num tempo sem passar pela vida diante de um nariz torcido, de uma suspeita, de uma desconfiança”, afirmou antes de acrescentar:
“O que seria da minha vida se eu não tivesse sofrido tanto racismo? Eu gostaria de saber qual tipo de dor eu não teria sentido se a desigualdade não fosse um escândalo diário?”.
A pergunta de Elisa não pode ser respondida, mas o evento reuniu produtores, gestores e atores culturais dedicados a criar conexões e promover mais e melhores oportunidades para a população negra. De acordo com Ronald Pessanha, líder do Negritudes Globo, a curadoria desta edição em Salvador buscou ainda dar “foco e luz” para os profissionais locais, gerando mais conexões..
“É um festival para ser sentido porque é muita emoção, muitas histórias, as pessoas se identificam. Mas, ao mesmo tempo, espero que muitas pessoas consigam fazer conexões aqui, que gerem possibilidades de trabalho para a galera do audiovisual e que a gente consiga trazê-las para as telas”, declarou ao g1.
Além do incentivo à troca de experiências profissionais, o evento também divertiu a plateia com o jeito engraçado de contar histórias da jornalista e atriz Maíra Azevedo, a Tia Má, e o humorista Sulivã Bispo, entre outros artistas que transformam suas narrativas em humor.
O festival teve ainda mediadores conhecidos do grande público, como as repórteres da TV Bahia, Tarsila Alvarindo e Luana Assiz, e a repórter e apresentadora da TV Globo, Zileide Silva. A apresentação geral foi comandada por Rita Batista, apresentadora do "É de Casa" e integrante do "Saia Justa", e Vanderson Nascimento, apresentador do "Bahia Meio Dia".
Saiba como foi o Negritudes Globo em Salvador
Mesa 01: Fé e narrativas
O painel que abriu os trabalhos da primeira edição baiana do Negritudes Globo teve como tema "Fé e Narrativas". Com participação da atriz e cantora Jéssica Ellen, do pastor Kléber Lucas, do Padre Lázaro e da ativista e representante do candomblé Ekedy Sinha, a mesa discutiu a importância de falar sobre religiosidade e seus ritos como forma de disseminar conhecimento sobre as tradições.
"Nós não somos invisíveis, e não podemos nem queremos. (...) O outro é ignorante [sobre o tema], ele não conhece, então a gente precisa mostrar através da mídia", defendeu Ekedy Sinha.
Para ela, uma forma de combater a intolerância é justamente mostrar para o outro que ele é um irmão. Seu entendimento foi compartilhado pelos demais integrantes da mesa.
A atriz Jéssica Ellen, por exemplo, conta que cresceu na umbanda e há sete anos se iniciou no candomblé. Desde então, ela passou a falar sobre sua fé e se surpreendia com comentários destacando sua postura corajosa, já que as religiões de matriz africana ainda são alvo de preconceito.
"Mas coragem de quê? De seguir o meu caminho? (...) Aí eu percebi que falar de religião também é importante". A artista, então, transformou sua religiosidade em música com o álbum "Macumbeira" (2021), que retrata a umbanda, e promete lançar um próximo disco sobre candomblé, todo em iorubá.
A mesa foi mediada pela apresentadora do "É de Casa" e integrante do "Saia Justa", Rita Batista. Ao conduzir a conversa, ela destacou também o sincretismo religioso tão cultuado na Bahia. Candomblecista, ela própria mantém hábitos da liturgia católica, como ir a missas e ler salmos.
"Quando eu comecei a falar de religiosidade no meu trabalho, quando eu leio um salmo (...) há quem pergunte: o que está acontecendo Rita?", comenta, aos risos.
É sabido que os povos escravizados tinham como estratégia louvar aos santos católicos por conta das opressões à religião de matriz africana. Mas com o passar do tempo, o laço foi internalizado por muitos adeptos do candomblé, a exemplo do que se vê em celebrações como a Lavagem do Bonfim, que simboliza esse sincretismo.
Como resumido por Ekedy Sinha, "a gente reza pra Nossa Senhora do Rosário e canta pra Iemanjá".
Mesa 02: Narrativas negras
Mediada pela jornalista Zileide Silva, da TV Globo, o bate-papo sobre "Narrativas negras: uma infinidade de possibilidades" foi protagonizado pelas atrizes Maria Gal e Maíra Azevedo, a Tia Má, e pelo diretor e professor de Cinema da Universidade de Nova York, Alrick Brown. Os três falaram sobre as oportunidades crescentes, mas ainda necessárias para levar histórias diversas para as telas.
"Quantos filmes nacionais vocês lembram de ter assistido e ver estampado no cartaz uma mulher negra?", provocou Maria Gal, ao questionar a plateia de forma retórica. Ela é parte da geração que vê os espaços começaram a ficar mais representativos.
"O que a gente vê na tela é reflexo do que está na direção, no roteiro. (...) A própria novela "Amor Perfeito", que eu fiz ano passado, teve a direção do André Câmara, Elísio Lopes no roteiro, então isso faz a diferença".
A trama em questão foi exibida pela TV Globo no ano passado, na faixa das 18h, com elenco tão negro quanto branco.
Ao falar sobre o assunto, Maíra Azevedo fez questão de lembrar o passado. "A presença de Gal, a minha... Isso é fruto de quem veio antes. (...) Quando a gente às vezes não existia nesses espaços, seu Milton Gonçalves estava dirigindo uma novela".
Maíra conta que sempre teve os semelhantes como referências e, além disso, sempre foi impulsionada por eles. Seu trabalho no humor, por exemplo, foi despertado pelo amigo Lázaro Ramos, ator, diretor e escritor.
Mesa 03: Painel LED: Educação Antirracista
O intelecto não pode ser medido pela dança ou pelo tamanho do shortinho. Esse é um resumo do painel “Educação Antirracista”, com apoio do Movimento LED - Luz na Educação. A mesa foi mediada pela atriz e apresentadora Larissa Luz, com participação da educadora Bárbara Carine, mais conhecida como "uma intelectual diferentona", a empresária Monique Evelle e o economista e influenciador digital Gil do Vigor.
Estudante de PhD, um doutorado, nos Estados Unidos, Gil conta que ainda hoje enfrenta desconfiança de pessoas que minimizam sua inteligência por conta da sua postura. O ex-BBB conquistou público na edição 21 do reality show justamente pelo perfil expansivo e divertido.
“Chegou um momento que eu me questionei: ‘será que eu preciso mudar?’”, lembrou. Mas ele logo viu que essa não era a solução.
“Eu falei: ‘não, eles precisam entender que a minha capacidade intelectual não tem a ver com o que eu danço’. As pessoas precisam aprender que não existe correlação. Eu não estou disposto a viver um personagem porque quando eu vou fazer meus concursos, as provas, o que vai valer é o que está aqui dentro”.
Outro exemplo nesse sentido é a professora doutora Bárbara Carine. Ela costuma palestrar usando blusas estilo cropped, divulga vídeos dançando pagode ao mesmo tempo que é autora de dois livros e fundadora da Escola Maria Felipa, a primeira a se instituir como antirracista no Brasil. “Ou a educação é antirracista ou não é”, defende.
Monique Evelle também se identifica com o discurso e traz outra perspectiva para sua abordagem. A comunicadora explica que desenvolveu habilidades para se comunicar, ser entendida e respeitada em qualquer grupo — seja a comunidade da periferia onde cresceu ou grandes investidores já inseridos no mercado financeiro.
“Eu consegui chegar num meio termo pra falar de dinheiro que também não fosse uma dor. Não é porque a gente veio da escassez que a gente não pode sonhar”.
Mesa 04: Fale do seu lugar e seja universal
“Da Bahia para o mundo” é um lema seguido por diversos artistas do estado, como o ator Érico Brás e o humorista Sulivã Bispo, membro do quarto painel do Negritudes Globo, mediado pela repórter Felipe Veloso, da TV Globo. Eles são profissionais que levam suas histórias, vivências e trejeitos compartilhados com toda a comunidade para os trabalhos realizados tanto local como nacionalmente.
“Tem coisas da gente que são muito ligadas ao nosso local”, lembra Sulivã, levando a plateia às gargalhadas com sua linguagem corporal.
Essa defesa das raízes se traduz também em mais diversidade no cenário nacional. Para Érico Brás, uma forma de reforçar isso é justamente demonstrando o valor econômico de contar histórias e manter equipes verdadeiramente diversas.
“Diversidade é bom para os negócios. As pessoas pretas precisam ter poder para poder produzir os conteúdos sobre a gente, as coisas da gente. Ser artista é uma profissão, a gente precisa ganhar”.
Também participante do painel, o diretor de Gestão de Conteúdo Globo, Gabriel Jacome, adianta que a empresa está atenta a esse pleito. Ele afirma que oito novos filmes serão produzidos, garantindo que haverá diversidade regional nos produtos. “Com protagonismo negro à frente e atrás das telas”, promete.
Mesa 05: Narrativas Orais como forma de resistência
O poder da oralidade foi tema da mesa com participação do líder sociocultural Valmir Boa Morte, da atriz e escritora Elisa Lucinda e do ator Amaury Lorenzo. Também professor e vice-campeão da Dança dos Famosos 2024, Amaury defende a oralidade como “a tecnologia mais sofisticada”, muito expressada por jovens através de manifestações artísticas como o rap e o funk.
“Através da arte, da educação, o jovem é transformado, mas a gente precisa viabilizar isso. Ele precisa de passagem [do transporte], ele precisa comer”, destaca, ao lembrar toda a estrutura que ainda é precária para grupos marginalizados da sociedade.
Quanto às estratégias de resistência, Valmir compartilhou algumas lições acumuladas nos 30 anos em que atua na Irmandade da Nossa Senhora da Boa Morte. O grupo é uma confraria religiosa, apontada como responsável pela alforria de inúmeros escravos.
Com isso, ele defende um legado de resiliência. “A gente vai levantando, caindo, tomando topada, mas sempre se mantendo de pé”, ensina.
“A resistência não foi só dos malês, foi dos nossos pais, nossos avós, foi daqueles e daquelas que vieram do navio. (...) É por isso que não admitimos nem aceitamos nenhum tipo de escravidão”.
Com mais de 35 anos de carreira, Elisa Lucinda também pode ser vista como um exemplo de resistência na televisão. A artista segue na ativa e na luta por mais espaço e reconhecimento.
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